Gatilhos e Hereditariedade
Às vezes a vida parece uma vitrola arranhada. Certas melodias tocam mais de uma vez — em pessoas diferentes, em épocas distantes, em contextos distintos. E ainda assim, iguais.
É como se existissem ciclos escondidos dentro do sangue. Ou talvez apenas fantasmas comportamentais. E aí a dúvida nasce: isso é convivência ou código genético? Aprendido ou herdado?
1. Genética e Comportamentos Aprendidos — o que nos forma?
É estranho pensar que há pedaços de mim que eu nunca escolhi. Traços que não são resultado de uma decisão, mas de uma transmissão silenciosa — ancestral, automática, inevitável. A genética é esse espectro invisível que nos habita antes mesmo que a consciência desperte. É a herança que não pedimos, mas carregamos. No corpo, no temperamento, talvez até nas quedas.
A hereditariedade se instala sem pedir licença: cor dos olhos, tipo sanguíneo, estrutura óssea... mas e quanto aos impulsos? À raiva súbita? À melancolia crônica? Será que também herdei esse caos emocional, tal qual herdei minha arcada dentária?
Segundo a biologia, muitas características comportamentais possuem marcadores genéticos: tendências à ansiedade, impulsividade, dependência emocional, níveis de empatia. Há traços que vêm de fábrica. Não são desculpas — são terreno. Um campo predisposto, mas que ainda pode ou não florescer, dependendo do que vier depois.
Mas se a genética é solo, o ambiente é o clima. E o ambiente ensina. Modela. Reforça. Reprime. Faz brotar. Os comportamentos aprendidos são aqueles que não herdamos no sangue, mas absorvemos pela repetição, pelo exemplo, pela convivência. São os vícios de linguagem, as formas de reagir, o jeito de lidar (ou não lidar) com o afeto. É o tom de voz que imita sem perceber. É o silêncio que repete o de alguém.
“Não somos apenas o que herdamos ou o que aprendemos — somos o que fazemos com isso.”
2. A Natureza Ambígua da Repetição
Repetir é aprender. Repetir é afiar. É assim que se memoriza, se melhora, se vence. A repetição é a base do estudo, do treino, da excelência. Quem já tentou dominar um instrumento, uma língua, ou um esporte sabe: repetir é parte do caminho. É o ritual da maestria. É o que transforma um gesto em fluência.
Eu sempre tive uma tendência natural a gostar de repetições. Talvez porque cresci com jogos. E nos jogos, a repetição é tudo. Você erra, recomeça. Você cai, tenta de novo. Você repete até dominar. É o loop da experiência que te molda como jogador — e, de certa forma, como pessoa. Cada tentativa falha é apenas uma promessa de que, na próxima vez, pode dar certo.
Mas nem toda repetição é redentora.
Existem repetições que não constroem. Existem ciclos que não elevam — só corroem. São os padrões tóxicos que voltam com outra face. As brigas que se repetem. As ausências que machucam igual. As palavras que você já ouviu antes, ditas por outra boca, mas com o mesmo veneno. E, de repente, o passado que você achava superado reaparece na voz de alguém novo. E te desmonta do mesmo jeito.
Eu gosto de repetir o que me melhora. Mas me destrói repetir o que já me feriu. E esse é o abismo da repetição emocional: às vezes ela parece familiar, segura, previsível — até que você se dá conta que está revivendo um trauma com outro nome.
Talvez por isso certas pessoas nos atraem tanto: porque, de forma inconsciente, elas sabem exatamente como nos machucar do jeito que já conhecemos. Elas repetem o script, e a gente atua de novo. Mesmo sabendo o final.
“A repetição é a mãe da perfeição, mas também pode ser a madrasta da dor.”
3. A separação como libertação
Eu já fui casado. Eu já fui escolhido por alguém — e também escolhi. E o divórcio, por mais doloroso que seja, tem uma parte cruelmente boa: ele te separa também daquilo que você não aguentava mais. É como arrancar um espinho que sangrava todo dia, mas que você já nem percebia mais.
“A dor é inevitável, o sofrimento é opcional.” — Haruki Murakami
Quando me vi livre, respirei aliviado. E fiquei muito atento aos padrões, qualquer coisa que parecesse rpetida, que me lembrasse aquele lugar entristecido do qual saí, era imediatamente encerrada. Eu prometi a mim mesmo que nunca mais iria passar por nada daquilo.
Até que a vida, com seu senso de ironia perfeito, decidiu me confrontar de novo.
4. Os gatilhos das repetições
Porque aí... veio minha filha morar comigo. E em pequenas atitudes, pequenas frases, pequenos gestos... eu vi os mesmos traços. Os mesmos padrões. As mesmas expressões. E tudo aquilo que eu jurei que nunca mais enfrentaria, apareceu com novo rosto. Dessa vez, no rosto de quem eu mais amo no mundo.
Isso gera gatilhos. Gatilhos que não posso ignorar. Mas que também não posso revidar.
Eu me pego me perguntando: será que isso é só reflexo de uma convivência passada? Se ela tivesse sido criada em outro ambiente, de outro jeito, com outra direção... seria diferente?
Ou... isso está no sangue? Essa forma de agir, de reagir, de tensionar os afetos... Está codificado? Herdado? Inevitável?
“O homem é livre para fazer o que quer, mas não para querer o que quer.” — Arthur Schopenhauer
5. A verdade sem saída
E talvez... talvez eu nem queira saber a resposta. Porque qualquer resposta pode me machucar. Pode me culpar. Ou pode me condenar à impotência.
A verdade é que com minha filha... eu não posso romper.
Não há divórcio.
Não há afastamento saudável.
Não há limite que me proteja de repetir o que já vivi — só a minha consciência tentando remar contra o que já sei.
“A hereditariedade é aquilo que acreditamos não ter herdado dos nossos pais.” — Jean Cocteau
6. Devaneio encerrado (por enquanto)
E talvez esse seja meu maior devaneio: tentar interromper o ciclo. Tentar ser barreira. Tentar ser abrigo. Mesmo quando parte de mim quer apenas fugir da dor que reconhece.
Não estou aqui buscando diagnóstico. Nem análise, nem explicação científica. Eu só estou escrevendo porque, hoje, doeu de novo. E às vezes, escrever é a única forma de impedir que a dor escorra pelos cantos da alma.
Bom... esse é o devaneio de hoje.
PS:
Tomara que não tenha nenhum psicólogo ou psicopedagogo lendo a minha página.
Eu realmente não sei o que estariam fazendo aqui também. Mas caso vocês estejam por aí... bem-vindos. Obrigado pela companhia.
Eu só estou aqui me lamentando por algo que novamente vem me machucando, machucando, e machucando.
E isso simplesmente é o que é. Não vai ser mudado. A minha relação com a minha filha é inalterável. Eu terei de estar com ela durante toda a vida dela. E basicamente será isso.
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