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sexta-feira, 25 de abril de 2025

Papo na fogueira #1 - Ceticismo e Fé

Papo na Fogueira #1 — A Primeira Brasa

Nem lembro qual de nós sugeriu o encontro. Talvez tenha sido um daqueles convites que brotam mais como necessidade do que como ideia. O tipo de coisa que ninguém escreve num grupo, mas todo mundo sente quando a vida começa a doer nas entrelinhas.

Nos encontramos tarde da noite. Um lugar simples, longe do barulho do mundo. Só nós três. Amigos de longa data que já foram mais próximos, mas que a vida — com sua vocação para separar o que era inseparável — tratou de colocar em cidades diferentes, rotinas opostas, silêncios não intencionais.

Não nos víamos há tempos. Anos, talvez. Mas bastaram os primeiros olhares, os abraços, a piada interna mais antiga que a barba de um de nós, e tudo voltou. Rimos como quem reaprende a própria língua.

A fogueira já queimava baixa quando nos sentamos ao redor dela. Cada um com uma cadeira de acampamento, uma bebida qualquer na mão, e aquele cansaço bom de quem está onde deveria estar.

Depois dos cumprimentos, das risadas, do “e fulano, hein?”, do “lembra daquela vez?”, veio a pergunta inevitável, feita sem palavras: por que estamos aqui mesmo?

Foi aí que a conversa começou. Não aquela de pegar notícias ou atualizar redes. Mas a de verdade. A que só acontece com o barulho da brasa estalando e um pouco de coragem pra rasgar as camadas do cotidiano.

Esse é o primeiro capítulo de uma série de encontros, reais e simbólicos, onde três homens falam sobre a vida, o que aprenderam, o que ainda não entenderam — e, principalmente, o que queimou pelo caminho.

Bem-vindo ao nosso Papo na Fogueira.

— Dário Junior

1. Fé, ceticismo e a ausência de respostas

Foi o André quem puxou o primeiro assunto. Não com peso, nem como quem dá palestra — mas como quem precisava, de algum jeito, tirar aquilo do peito. Falava devagar, olhos baixos, segurando o copo com duas mãos, como quem esquentava as palavras antes de soltá-las.

“Eu já fui mais crente”, ele disse. “E não falo só de acreditar em Deus. Falo de acreditar que havia uma lógica, um propósito. Um plano. Que a dor tinha motivo. Que o bem sempre voltava. Que o mal era cobrado.”

Ele falou sobre o tempo em que frequentava o kardecismo, com aquelas reuniões de estudo, o Evangelho no Lar, os livros de Allan Kardec — e depois o catolicismo, com seus ritos, santos, e uma fé mais silenciosa, quase ritualística. Mas com o passar dos anos, tudo começou a parecer mais distante. Mais vazio. Mais... improvisado.

“Você começa a olhar pro mundo e não consegue mais aceitar as explicações prontas. Aí vê criança doente, gente boa quebrando a cara, gente ruim prosperando. E começa a perguntar: cadê? Cadê o plano, cadê o retorno, cadê o equilíbrio?”

Ele falou sobre seu cansaço com promessas invisíveis. Disse que não odiava Deus — mas também não via mais sentido em pedir sinais. “Porque se tem algo além, ele anda bem calado. E se tem justiça divina, ela parece operar em outro fuso horário.”

Ninguém interrompeu. Nem eu. Nem o outro amigo. Era noite de ouvir.

“A real”, ele disse, “é que eu queria prova. Não sentimento, não intuição. Prova. Experiência. Um clarão. Um milagre. Um recado. Qualquer coisa que não fosse só discurso.”

Ele virou o copo, olhou pra fogueira e concluiu: “Mas talvez o silêncio seja a única resposta.”

E foi só então que alguém falou. Mas isso já é o próximo capítulo.

2. Vozes do invisível

Foi o Alexandre quem quebrou o silêncio depois do desabafo do André. Mas ele não falou pra contestar. Falou como quem oferece outro caminho pra mesma pergunta.

“Cara,” ele começou, “eu entendo demais esse vazio. Já senti ele também. Mas comigo foi o contrário: quanto mais eu via o mundo doido, mais eu buscava entender o que vinha depois.”

Alexandre é espírita. Daqueles que não só leem, mas vivenciam. Estudioso, calmo, quase didático. Não daquele jeito arrogante de quem quer ensinar, mas como quem se acostumou a dar nome ao que outros só sentem.

Ele falou sobre os fenômenos. Sobre mesas girantes, psicografias, materializações. Sobre relatos que circulam há mais de um século e que, segundo ele, resistiram ao tempo por um motivo: “Não tem como tudo isso ser invenção. Tem coisa ali que escapa do acaso.”

Comentou sobre o Livro dos Médiuns, citou experiências que acompanhou de perto em centros, com médiuns sérios, discretos, longe dos holofotes. “Já vi coisa que não dá pra explicar como coincidência. Presenças. Palavras que ninguém podia saber. Sensações que não são suas.”

Mas ele não vendeu milagre. Não usou como resposta definitiva. Disse com serenidade: “Não tô dizendo que a dor tem que ser aceita sem revolta. Tô dizendo que existe algo além. E que o Espiritismo, pelo menos pra mim, é a doutrina que mais se esforça pra oferecer alguma prova concreta disso.”

“E não é sobre crer cegamente. É sobre observar. Estudar. Viver. A fé aqui não é só emoção — é raciocínio também.”

André ouvia. Calado. Como quem escuta sem comprar. Mas escuta mesmo assim.

Ali, na beira da fogueira, não havia debate. Havia ecos. E cada um parecia carregar uma parte da verdade que o outro ainda não via.

Eu ainda não tinha falado nada. Mas já sabia que ia chegar a minha vez.

3. Nem anjos, nem demônios — só gente

Foi o Alexandre quem trouxe o próximo ponto. E dessa vez, com um sorriso no canto da boca. Pegou o celular, procurou um vídeo e disse:

“Vou mostrar um negócio pra vocês. É meio sátira, mas resume bem uma parte da doutrina que pouca gente entende.”

No vídeo, um homem fala com ironia inteligente: “O Diabo não existe. Anjo também não. Tem só gente. Encarnada e desencarnada. E algumas dessas pessoas são bem difíceis — com ou sem corpo.”

Rimos. A fogueira estalou alto, como se também tivesse achado graça. Mas Alexandre não ficou só no riso. Ele pausou o vídeo e continuou:

“É isso que o Espiritismo tenta mostrar. Que o mal e o bem não estão fora. Estão em nós. E em quem já foi. Quando falamos de obsessores, por exemplo, não estamos falando de demônio com tridente. Estamos falando de alguém que morreu e ficou preso à raiva, ao vício, à inveja. Gente comum, com problema mal resolvido.”

Ele explicou que a obsessão espiritual não é castigo divino, nem possessão de filme. É só uma ligação emocional não rompida. Um laço tóxico entre consciências, que às vezes vem de outras vidas, às vezes nasce nessa aqui mesmo.

“A gente adora terceirizar o mal”, ele disse. “É mais fácil dizer que o demônio fez do que assumir que a pessoa fez — porque quis. E o mesmo vale pros milagres. Nem todo sopro de luz vem de anjo. Às vezes, é só alguém lá do outro lado ainda tentando fazer o bem.”

Ficamos em silêncio por alguns segundos. Não aquele silêncio de constrangimento — mas o silêncio do “faz sentido”. Do “eu nunca tinha pensado por esse ângulo”.

Era curioso como a conversa circulava pelo invisível com tanta naturalidade. E, mais curioso ainda, como mesmo discordando em pontos, ninguém levantava barreira. Era como se a fogueira aceitasse todas as chamas — desde que não apagassem a escuta.

4. Céu, Inferno e o Cristo que não me abandona

Eu respirei fundo antes de falar. Não por hesitação — mas por respeito. Porque quando três adultos se expõem de verdade, com as feridas abertas pela vida, não se trata mais de convencer. É só sobre dividir o que queima em cada um.

“Eu entendo o vídeo. Juro que entendo. Essa ideia de que tudo se resume a pessoas, encarnadas e desencarnadas... tem lógica, tem peso. Mas, pra mim, ainda existe o céu. Ainda existe o inferno. E não só como metáforas.”

Falei com calma. Olhando pra brasa, que já estava mais vermelha do que laranja. “Eu ainda acredito no Deus da Bíblia. Acredito no Cristo. Não só como um símbolo — mas como presença. Como alguém que esteve aqui e ainda está.”

Não citei versículos. Não preguei. Não levantei bandeira. Mas eu disse com clareza: eu acredito em anjos. E acredito que existe um mal que vai além da maldade humana. Um mal que tem nome, que tem rastro, que tem fome. O mal que divide, que suga, que mente bonito. E não, pra mim, isso não é só gente desequilibrada. É espiritual também.

“Eu sei que muita coisa é construção, que muita coisa a gente repete sem pensar. Mas tem algo em mim que nunca abandonou a ideia de que há um lugar preparado. Que há justiça depois do caos. Que existe um céu — e que existe um inferno. Não só como estados de espírito, mas como realidades espirituais.”

Os dois me ouviram sem piscar. E foi bom poder dizer sem medo, sem precisar medir palavra. Porque ali, naquela roda, não existia doutrina. Só fé tentando se traduzir.

“Talvez isso tudo que a gente tá falando seja só linguagem pra tentar dar forma ao invisível. Mas no fundo”, eu disse, “minha fé é a única coisa que me impediu de me perder completamente. E enquanto ela estiver aqui, eu acredito: há mais coisa entre o céu e a terra... e o Cristo, pra mim, é a ponte.”

Ninguém respondeu na hora. Só o silêncio concordando que toda fé sincera é válida — mesmo que caminhe por trilhos diferentes.

A fogueira seguia acesa. E ainda havia muito o que queimar.

5. Entre boatos e documentos

Foi o Alexandre quem puxou essa agora. Meio de passagem, no embalo da conversa sobre fé e doutrina. Falava sobre as distorções da religião ao longo dos séculos, e aí soltou: “O cânon da Bíblia foi criado por Constantino no Concílio de Niceia, né? Aquela coisa toda de escolher os livros que interessavam ao Império.”

Eu respirei, bebi um gole, e respondi com cuidado — porque esse era o tipo de tema que poderia virar disputa se não fosse tratado com a mesma leveza da brasa.

“Mano, isso é um boato. Muito repetido, sim, mas sem nenhum lastro arqueológico ou documental real. Essa história de que o imperador Constantino escolheu a dedo os livros da Bíblia no Concílio de Niceia não tem base histórica confiável. O Concílio aconteceu, claro. Em 325 d.C. Mas o tema ali era a natureza de Cristo, se Ele era coeterno com o Pai ou não. Nada sobre canonizar livros.”

Falei sem levantar a voz, nem bater martelo. Só colocando os fatos que eu já tinha pesquisado. “O processo de formação do cânon bíblico foi muito mais longo. Bem anterior a Constantino em partes — e bem posterior em outras. Era uma questão de uso comunitário, reconhecimento entre os fiéis e cartas circulando entre as igrejas. Não teve um decreto imperial dizendo ‘isso entra, isso sai’.”

“E sim, houve listas. Houve debates. Houve textos que circularam e depois deixaram de circular. Mas associar isso ao poder de Roma como quem troca capítulos de um livro por conveniência política é simplificar demais.”

O André acenou com a cabeça. O Alexandre ouviu em silêncio e no fim soltou um “vou dar uma lida melhor nisso aí depois”. Que já era mais do que suficiente. Ninguém ali precisava vencer. Era só mais um tronco lançado na fogueira das ideias.

Rimos, como se soubéssemos que no fundo... até as conversas mais sérias são feitas também de ruído, de mitos repetidos, de “ouvi dizer” que ganha força com o tempo.

E ali, sob aquele céu escuro salpicado de estrelas, a gente lembrava que verdade, fé e história às vezes não moram no mesmo parágrafo — mas podem dividir a mesma roda.

Últimas brasas da noite

A fogueira já estava quase virando brasa. O vento esfriava devagar, e as palavras também iam ficando mais espaçadas. Mas o silêncio não era desconfortável — era contemplativo. Aquela pausa boa depois de um papo longo, onde ninguém precisa fingir certeza e cada dúvida é tratada como uma chance de aprender.

Nós três sabíamos que não concordávamos em tudo. Mas também sabíamos que isso não tinha a menor importância. Porque amizade de verdade não exige aliança teológica. Exige escuta. E isso a gente tinha — de sobra.

André, com sua decepção espiritual honesta, nos mostrou o rosto humano do cansaço de crer. Alexandre, com seu entusiasmo doutrinário sereno, nos lembrou que fé também pode ser lógica. E eu... entre um e outro, compartilhei minha própria visão: cheia de céu e inferno, Cristo vivo, e um Deus que nunca saiu da linha do meu horizonte.

O que nos unia não era a resposta. Era o fogo. O desejo de entender. A coragem de perguntar. A vontade de falar das coisas que o mundo ensina a engolir calado.

Antes de apagar a última centelha, combinamos: o próximo encontro teria um novo tema. Algo que ficou ali, anotado no canto de uma caixa de fósforos, como se fosse a pauta mais importante da eternidade:

“Na próxima vez, vamos falar sobre as provas arqueológicas da existência de Jesus. E dos textos. Das profecias bíblicas. De tudo isso que ficou só encostado hoje.”

Porque a fogueira pode apagar, mas o papo não termina. E a amizade... essa não precisa ser reacendida. Ela só precisa de espaço — e de tempo.

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