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quinta-feira, 10 de abril de 2025

Flores, amores, prazeres e dissabores - Epicuro

Quando o Prazer Perde o Sabor

Entre Epicuro, memórias e os vazios que vêm com o tempo. Sobre cafés sem alma, viagens sem brilho, beijos sem gosto e a coragem de perder o encanto.

Outro dia entrei num lugar que um dia amei. Pedi o mesmo café de sempre, sentei na mesma cadeira perto da janela, deixei o mesmo vento bater no rosto... e não senti absolutamente nada.

Não era nostalgia. Não era ausência de alguém. Era ausência de mim. De uma versão minha que já não estava mais ali.

Foi nessa hora que lembrei de Epicuro. Não por acaso. A filosofia dele fala do prazer — mas não do prazer insaciável e explosivo que tantos procuram. Epicuro defendia o prazer simples, contínuo e sábio. Ele alertava que ao se acostumar com o que há de mais raro e intenso, o ordinário se torna intolerável. E que isso é uma armadilha.

Mas o que fazer quando o ordinário já não encanta, e o extraordinário também perdeu o brilho?


☕ Cafés, beijos e ruínas

Algumas pessoas são como aquele restaurante que você descobriu na juventude e que parecia esconder o melhor sabor do mundo. Você leva amigos, namorados, família. A comida não muda. Mas, um dia, você percebe que o tempero ficou comum. Ou pior: ficou sem sentido. E o que era uma descoberta vira ruína com cardápio.

É assim com alguns beijos também. Com algumas viagens. Com certos olhares que antes acendiam. Com playlists que hoje soam como eco.

O problema nem sempre está no outro — ou no lugar. Às vezes é só a vida mudando de paladar.

Epicuro chamaria isso de libertação, se você conseguir desapegar. Mas de prisão, se tentar reviver o prazer pela repetição.


🌍 A viagem que nunca se repete

Voltar para certos lugares tentando reviver sensações é como tentar escrever uma carta com tinta que já secou. Os traços até aparecem, mas sem alma.

Lembro de uma cidade que me deixou apaixonado aos 20 e indiferente aos 30. A arquitetura era a mesma, as ruas preservadas, os sabores idênticos. Mas eu havia mudado. Aquela versão de mim que se emocionava com calçadas largas, janelas azuis e pães frescos havia partido. E o novo eu só via... um lugar bonito e vazio.

Não é sobre o lugar. É sobre quem a gente era quando o conheceu.


🍷 O vinho de ontem, o paladar de hoje

Com os relacionamentos é igual. Alguns foram como vinhos caros tomados cedo demais. Não tínhamos maturidade para saborear. Outros, como pratos elaborados servidos quando só queríamos pão com manteiga.

Hoje entendo que amar também exige paladar — e esse paladar muda com o tempo. Às vezes o que era “intenso” vira “exaustivo”. O que era “emocionante” vira “ansioso”. O que era “cósmico” vira “confuso”.

Mas a culpa não é do prato. É da fome. E da idade da fome.


📜 Epicuro e a beleza do suficiente

Epicuro dizia que quem se contenta com pouco é mais rico do que quem possui muito, mas nunca se sacia. Para ele, o segredo da felicidade era a capacidade de sentir prazer nas coisas simples — justamente para não depender de banquetes, paixões épicas ou vistas paradisíacas.

Hoje isso me faz pensar: talvez a maturidade não seja sobre perder o prazer, mas sobre aceitar que ele muda de lugar. Que ele se esconde no silêncio, na água morna, no café sem efeito especial. E que às vezes, sentir menos não é um defeito. É só... uma nova camada.

Tem gente que insiste em viver como se a primeira vez fosse eterna. Eu, hoje, tento me apaixonar pela segunda vez. Pela terceira. Pelo possível. Pelo suficiente.


🌒 Conclusão: quando o brilho apaga

Há lugares que só brilham quando a gente brilha por dentro. Há músicas que só funcionam para corações partidos. Há sabores que só emocionam quando a alma está faminta.

E está tudo bem deixar de gostar de certas coisas. Está tudo bem não sentir mais aquele frio na barriga. O importante é não transformar isso em culpa.

Epicuro não queria que a gente sentisse menos. Queria que a gente sofresse menos. E talvez por isso nos ensinou a não depender do extraordinário. A se encantar com o básico. A reaprender a ter prazer sem se tornar escravo dele.

Hoje, meu café está morno. A música está baixa. A vista é a mesma de ontem. Mas estou em paz. E isso... já é um novo tipo de prazer.

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